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Arte e Cultura na Rússia Antiga

Beleza e Santidade

Arlete O. Cavalieri*

Este artigo procura analisar as relações entre a estética e a religiosidade
na arte e na cultura da Rússia medieval.

Rússia: séculos IX e X

ma vasta planície ao leste da Europa. Florestas intermináveis banhadas por uma grande quantidade de rios, que se unem e se deslocam em largas vias fluviais em direção ao mar Negro ao sul, o Báltico e mar Branco ao norte, o Cáspio a leste.

Tribos heterogêneas espalham-se por esse imenso território, fixando-se ao longo dos rios; eslavos orientais, kasares turcos, ugro-fineses. Mas houvera já nessas gélidas paragens, em tempos mais remotos, contínuas ocupações por tribos nômades e semi-nômades; citas, sármatas, godos, hunos. Umas após outras, por leste ou por norte, percorriam as planuras das estepes ou avizinhavam-se dos imensos rios. Navegáveis em grande parte, esses rios constituíam vias de ligações naturais entre as povoações; um convite à vida errante e também, mais tarde, ao comércio.

A lenda que nos chegou através dos escritos de alguns monges, cronistas ou historiadores da idade média, conta que uma comunidade eslava da região correspondente à atual cidade de Nóvgorod teria "convidado" um chefe guerreiro da Escandinávia, um varegue (palavra de origem escandinava väring) chamado Rurik, para organizarem juntos a defesa dos seus domínios contra os povos vizinhos e restaurarem, enfim, a ordem nas terras eslavas, situadas então entre importantes rotas comerciais que visavam, sobretudo a região de Bizâncio: “Venham e governem-nos, a nossa terra é vasta e fértil, mas falta-nos organização”.

O ano de 862 corresponderia então, segundo as crônicas, à data de fundação do Estado russo, já que os descendentes do legendário príncipe Rurik teriam seguido para o sul, e fundado em Kiev, junto ao rio Dniepr, a capital de um grande reino. A Rússia surgiria assim, na confluência de uma das mais importantes rotas comerciais da Europa dos primeiros tempos: a “via entre os varegues e os gregos”, isto é, entre a Escandinávia e Bizâncio.

Até muito recentemente, início deste século, pouco se sabia do passado eslavo. A história das artes e da cultura russa começava, por assim dizer, no século XI. Graças aos progressos das pesquisas arqueológicas, há hoje estudos mais precisos não apenas sobre a longa evolução da cultura original dos eslavos no período pré - kievano, mas também, sobre a própria pré -história da arte russa, considerada hoje em toda a sua riqueza e variedade, resultado de diversas culturas que, ao se interpenetrarem ao longo dos séculos, acabaram por criar a fusão de elementos, ao mesmo tempo heterogêneos, mas, por isso mesmo, bastante originais em toda a sua complexidade. Na realidade, a cultura artística evolui nessa região com o próprio desenvolvimento dos povos que por lá passaram ou mesmo que ali se fixaram, na medida mesma da lenta progressão que os conduzia, enquanto povos primitivos, de estágios e fases menos evoluídas para graus superiores de expressão cultural.

De toda forma, há hoje materiais e estudos que comprovam que os homens que habitaram o território russo nos tempos primitivos começaram a se expressar artisticamente ao mesmo tempo em que, em outras partes do mundo, especialmente na Europa mediterrânea, no norte da África e na Índia. 1

Com relação aos eslavos orientais, sabe-se que Kiev foi apenas uma etapa numa longa serie de formações de Estados no sul da Rússia e que já existiam relações entre os povos que viviam junto ao Dniepr e os habitantes das regiões do Danúbio, do norte germânico e do Império do Oriente.

Esses eslavos eram compostos por inúmeras tribos que se constituíam num sistema social baseado numa hierarquia de famílias que se agrupavam à volta da família dos chefes, tal como ocorre em tantos povos primitivos. Praticavam a agricultura, plantando especialmente centeio, trigo e linho e, ao mesmo tempo, criavam gado. As casas eram construídas com toras de madeira ou terra batida e escavações recentes demonstram a existência de uma arte florescente e extremamente rica. Pagãos, esses eslavos veneravam as forças da natureza às quais conferiam o atributo de vários deuses: o trovão e o raio, denominados Perun, a principal divindade eslava; o céu é Svarog e Stribog, o deus do vento. Bosques e rios eram povoados de diversas divindades.

Os objetos de culto e sacrifício eram imagens rudemente esculpidas, símbolos das várias divindades e que eram veneradas ao ar livre sobre as colinas, onde os sacerdotes realizavam seus rituais, faziam profecias e curavam os doentes.

A fusão dos eslavos com os varegues fez-se rapidamente em função de interesses comuns: o alvo era o acesso ao mercado de Bizâncio e assim, essas tribos se viam fortalecidas para uma série de expedições guerreiras em direção à Constantinopla. A economia russa via também assegurados novos mercados mediante tratados comerciais com Bizâncio e o intercâmbio cultural recebia novo impulso.

Mas essa evolução cultural que significava, em última análise, fazer do reino de Kiev uma potência européia, teve como fator propulsor a cristianização da Rússia, na sua forma bizantina. Em seu esforço para unificar as crenças de todos os povos, eslavos e não eslavos, que integravam a Rússia Kievana, o príncipe Vladimir I, em 986, chegou a reunir todas as divindades pagãs das diferentes tribos num só panteão para que suas efígies fossem adoradas num mesmo espaço sagrado. Mas a unidade esperada não se realiza. A Rússia está ainda permeada de outros povos, isolada, separada de Europa e da Ásia.

É assim que o grão-príncipe se decide pela famosa "escolha" entre as diferentes religiões, fato mencionado nas crônicas antigas: Vladimir I teve contato com muçulmanos, cristãos e judeus Kazares e também ouviu a homilia de um filósofo grego. Apesar de ter ficado bastante impressionado, ao constatar que os gregos falavam “hábil e maravilhosamente” e que se tinha prazer em ouvi-los decidiu que não bastaria ouvir, mas era preciso também ver.

Designa então dez homens "cheios de bondade e sensatez" para irem ver de perto o que era, na verdade, a realidade sensível de cada religião.

Os enviados cumpriram sua missão. Rejeitaram as posturas e os gestos dos muçulmanos rezando em suas mesquitas por lhes estranhar o ritmo e as atitudes que lhes pareceram tristes. O rito latino tampouco os satisfez esteticamente. Em contrapartida, em Constantinopla, o patriarca lhes mostrara a beleza da liturgia e eles relataram-na a seu soberano:

Não sabíamos se estávamos no céu ou na Terra, pois não há sobre a Terra nada com tal majestade e beleza, e nem saberíamos como descrevê-la; só sabemos que ali Deus está presente entre os homens, e que suas cerimônias são melhores do que as de qualquer outro país. Não esqueceremos tal beleza".

É claro que é possível pensar que a "escolha" de Vladimir pela religião de Bizâncio deve-se, certamente, em grande parte, às relações comerciais existentes entre Kiev e Constantinopla.

Além disso, o príncipe encontrava-se à frente de uma frágil federação de tribos eslavas, mantidas unidas pela força ou, pelo menos, pela ameaça constante de seu emprego. O batismo coletivo significava uma possível unificação política e espiritual de todos esses povos mediante uma religião comum a todos.

Seu objetivo era colocar seu principado no mesmo patamar que as monarquias mais adiantadas de sua época, o que implicava aprofundadas transformações. Eram necessárias novas leis, uma nova consciência social, novos costumes e tudo isso poderia ser encontrado em Bizâncio.

E ainda mais: para poder situar-se no mesmo nível dos países mais adiantados da Europa e do Oriente, Kiev Rus deveria adotar as técnicas de construção e de manufatura, a ciência e a cultura que também lhe oferecia o império bizantino.

Portanto, a opção pelo cristianismo, ao mesmo tempo em que era ditada por um fundamento histórico, obedecia também, certamente, à sabedoria de estadista do príncipe convertido.

Mas, segundo Dmítri Likhatchov, um dos maiores estudiosos da cultura russa antiga 2, se os fatos relatados na Crônica dos tempos passados, também chamada de Crônica de Nestor, encobrem a verdade dos fatos históricos e criam uma ficção no episódio da "prova das religiões", o que vale a pena notar é que o argumento estético, ficcional ou não, ("Não esqueceremos tal beleza.

Ali Deus está presente entre os homens") delineia um traço característico dos antigos eslavos orientais: a beleza considerada como critério de verdade de um pensamento. Apenas a beleza permitiria afirmar a verdade do cristianismo. A pintura de ícones, a arquitetura, a música e, mais tarde, a poesia se associariam indissoluvelmente ao pensamento especulativo que se exprimiria por intermédio das cores, das formas arquitetônicas, da música, da arte verbal.

Há, sem duvida, na lenda uma visão de mundo, onde o vínculo entre a estética e o sagrado parece indissolúvel e que se exprime de forma evidente na arte dos ícones: a beleza não é simplesmente bela, a beleza é um critério de verdade, e é o critério de verdade mais profundo e mais fundamental.

A cristianização foi progressiva e durou aproximadamente um século. A evangelização dos monges missionários Cirilo e Metódio deu-se no século XIII através, principalmente, da criação de um alfabeto e da tradução para o eslavo antigo dos evangelhos e dos livros litúrgicos. Sob a influência das línguas locais, o eslavo antigo adquire a seguir formas levemente variadas e, na Igreja Russa, a língua nacional passa a ser utilizada na pregação, nos serviços religiosos, bem como em toda uma literatura de caráter didático e religioso.

Mas, o clero vindo de Bizâncio não se limitou a celebrar o novo culto nas novas igrejas. Dedicou-se à formação de dignitários eclesiásticos nacionais que contribuíram por sua vez para a difusão do saber e da alfabetização.

Bizâncio se encontrava no apogeu de seu esplendor. A tradição da antiguidade permanecia viva: Homero e outros autores clássicos eram estudados nas escolas, enquanto o pensamento de Platão e Aristóteles alimentava as discussões filosóficas. Uma cultura nova, portanto, se espalhava pouco a pouco pela Rússia Kievana.

Seria assim de se supor que os eslavos, seduzidos pela beleza da arte bizantina, tenham feito de Constantinopla o seu modelo na arquitetura, na música, na pintura, ao mesmo tempo em que recebiam todo o seu sistema religioso. É verdade que durante os séculos X e XI, Constantinopla se constituía como o principal pólo cultural de toda Europa.

Mas, a Rússia recém-convertida, já em plena expansão, negava-se a aceitar uma simples submissão em relação ao Patriarca e ao Imperador bizantinos. A conversão ao cristianismo, que significava a adoção de técnicas e culturas de Bizâncio, não renunciava, de modo algum, a independência do Estado, buscando conversar, antes de tudo, sua plena soberania.

Assim, se nos inícios foram chamados arquitetos e artesãos bizantinos para construir edifícios e igrejas de pedra, decorados com afrescos, mosaicos e ícones, as gerações seguintes já puderam erigir conjuntos arquitetônicos nas cidades russas, assim como criar uma arte original e muito peculiar: ícones e mosaicos decoravam os interiores das igrejas e catedrais com traços que já evidenciavam o nascimento de um estilo russo.

Os artistas russos dominaram magistralmente a técnica da pintura mural e do mosaico e, a partir de século XI os pintores de ícones Kiev levaram a sua arte para outras cidades da Rússia. É preciso lembrar que os príncipes de Kiev travaram uma luta aberta incessante contra a Igreja de Bizâncio, a fim de preservar sua independência. Bizâncio queria instalar em Kiev um metropolita grego, mas Kiev insistiu em um metropolita russo. E no âmbito artístico essa rivalidade toma uma forma específica. Todo estudo comparativo da civilização Kievana atesta que a assimilação da tradição bizantina vem acompanhada de uma recriação fundamental 3.

Os costumes de Kiev, escreveria Pushkin, em nada parece com os costumes de Bizâncio. Nós tomamos de Bizâncio o Evangelho e a tradição, de maneira alguma seus costumes corrompidos.

Essa liberdade em relação aos modelos repousa, certamente, sobre as ricas tradições locais que tem raízes no próprio desenvolvimento histórico anterior e que, como vimos, remonta aos tempos pré-históricos. Sem duvida após a cristianização, o clero empregaria todas as suas energias para destruir o paganismo, qualificando os rituais, ídolos e divindades pagãs de diabólicas. Mas é certo que se os eslavos conheceram, por um lado o mesmo desenvolvimento que os outros paises da Europa, os quais, sobre as ruínas de uma sociedade antiga, criaram os estados feudais e uma civilização medieval, por outro lado, a diferença fundamental reside no fato de que as bases feudais eslavas já se constituem quase que imediatamente após a decomposição da comunidade primitiva.

Assim, a mitologia eslava conserva intacta sua especificidade de “religião da natureza” e não é integrada a um sistema rígido de dogmas, o que permite aos eslavos superar as barreiras que poderiam representar a sobrevivência do paganismo. Desta forma nos século X e XI eles começam a dar novo impulso à sua cultura. Na verdade as velhas tradições eslavas jamais desapareceram completamente. Algumas subsistem até mesmo o século XIX, especialmente em certos motivos pagãos freqüentes em algumas manifestações artísticas mais espontâneas, como no artesanato em formas de expressões populares, que escapavam mais facialmente à férula da Igreja.

É certo que esculturas e objetos pagãos foram destruídos e baniu-se o sacrifício humano ligado a seu culto. Velhos santuários pagãos foram derrubados enquanto novas igrejas cristãs surgiram no lugar delas. Mas outros elementos da velha religião foram incorporados à nova crença, como, por exemplo, os ovos de barros pintados, associados à Páscoa Cristã, parecem derivar de modelos pagãos, símbolos da primavera e da fertilidade.

Sobre os bordados e desenhos entalhados em madeira, bem como nas esculturas de origem camponesa podem ser observadas imagens de animais e figuras humanas fantásticas, mulheres, por exemplo, com corpo de peixe, que remontam às divindades pagas e que foram integradas na tradição artística e literária russa. Basta pensar nos contos fantásticos gogolianos, especialmente aqueles que expressam todo um imaginário do universo ucraniano, para detectar ali inúmeras figuras, seres e lendas que fazem parte do folclore e da arte popular russa.

Com efeito, tentaram de todas formas banir a pratica pagã comum de adorar estátuas de deuses e de deusas, diante das quais queimavam o incenso e imolavam as vítimas. Portanto, retirando do santuário as estátuas e os altos relevos, tinham admitido, isto sim, as imagens pintadas, cujo aspecto plano não poderia induzir em erro o espírito dos fiéis.

Levando mais longe o cuidado de desencorajar as devoções suspeitas, o clero russo evitara reservar capelas aos principais santos da Igreja. Estes tinham quase sempre a efígie nos pilares das naves, nas paredes do iconostase, mas raramente num local onde pudessem ser objeto de uma adoração exclusiva. Opunham-se também a que se desse o tom da carne viva aos rostos dos bem aventurados e insistiam em que os artistas devessem colori-los num tom bistre, o menos natural possível.

O iconostase, presente hoje ainda nas Igrejas ortodoxas, constitui-se como uma parede coberta de ícones cuja função é a de separar duas áreas distintas da Igreja: de um lado está a nave onde ficam os fiéis, e de outro, o altar, isto é, a casa de Deus, reservado aos sacerdotes. Os ícones do iconostase se interpõem entre esses dois mundos, o secular e o sagrado, o mundo dos sentidos e o mundo espiritual, o terrestre e o celestial. No centro está a chamada porta santa: é através dela que o sacerdote fala às pessoas e faz a comunhão, trazendo ao altar os mistérios de Cristo. Essa porta caracteriza-se como uma via comunicante entre Deus e o homem.

Sendo o ícone um mistério, a arte de o pintar é uma tarefa sagrada. O ícone expressa uma verdade revelada, e mais do que uma representação é o símbolo da visão espiritual de uma religião, e seus cânones são estabelecidos pela tradição. O pintor deste tipo de imagem sagrada não é um artista que expressa idéias ou sentimentos pessoais, mas um mediador que transmite a visão da Igreja. O ícone pode-se dizer, é uma autentica teologia.

O artista só podia ser, portanto, um fiel ortodoxo, cujo talento é sustentado por uma grande pureza de alma. Preparava-se para o seu trabalho por meio de jejum e de oração: “santifica e ilumina a alma de teu servo”, pedia ele, “conduz a minha mão para que ela apresente digna e perfeitamente o sagrado ícone.” 4

A busca da "beleza divina" (em russo, "blagoobrazie") pelo monge-pintor traduz a idéia da beleza como santidade e a santidade como beleza, uma beleza austera, estreitamente ligada ao isolamento e às provações. Mas este isolamento é um "isolamento esplêndido" que não traz apenas dor e tristeza, mas também a plenitude de uma alegria pura. Assim, segundo essa espécie de filo do ícone, o deleite diante da beleza só se justifica pela dimensão austera do conjunto e a garantia de que a beleza não degenerará em "prazer ilícito", mas permanecerá na "beleza divina".

A beleza tem aqui força de argumento, como se uma interpretação filosófica da existência tomasse a forma da pintura do ícone. Não é apenas nos tratados, nas reflexões e definições, mas sim, nas manifestações visíveis dessa beleza firme e límpida que devem ser procuradas as idéias que estão no âmago da cultura russa antiga. Através, portanto, dessa criação da beleza que, em última análise, deveria deixar transparecer em estado puro a luz da significação espiritual, a arte pictórica da Rússia antiga assumia também funções que, em outras culturas, cabiam ao pensamento abstrato. O rigor do ícone russo buscava fazer calar estados de alma a fim de que só se pudesse escutar a voz do Espírito. O artista não quer inspirar, tocar, nem emocionar, ele quer mostrar a verdade pura, quer dar testemunho indiscutível, absoluto.

A obra de Andrei Rublióv testemunha talvez o ponto culminante de todo o desenvolvimento da arte dos ícones russos antigos, pois, segundo estudiosos, ele reúne o melhor das tradições bizantina e russa.

Após a invasão mongol no século XIII que dura mais de dois séculos, e que fará a Rússia sufocar culturalmente sob o jugo da Horda de Ouro, Kiev está enfraquecida e fragmentada pela longa servidão e pelas disputas internas sucessórias. A Rússia começa então constituir em Estado unificado em torno de um esquecido principado sediado em Moscou, onde então será alicerçado o núcleo futuro da cultura russa.

O novo desabrochar artístico do século XIV e da primeira metade do século tem como pano de fundo não só o enfraquecimento progressivo do jugo tártaro-mongol, mas também o restabelecimento das relações culturais com os outros países, principalmente com os Bálcãs.

Uma das formas de renovação foi também um certo retorno à "antiguidade nacional”, isto é, ao período kievano da história russa. Moscou se proclamaria não só a herdeira de Kiev, como também, com a queda de Constantinopla sob o domínio turco, herdeira e guardiã da fé cristã , batizando-se de a terceira Roma .

Novas tendências na arte e na cultura russas não tardarão a se manifestar e há quem considere este período como uma espécie de pré-Renascença, nos moldes do que tinha um ou dois séculos antes na Europa ocidental. 5

É nesse novo contexto sócio-cultural que a arte de Rublióv vem se inserir, configurando um dos mais geniais períodos do que se convencionou chamar na história russa de Escola de Moscou.

A arte de Rublióv reflete os principais processos da evolução da vida espiritual não apenas da Rússia, mas também de todo o mundo bizantino.

Trata-se em primeiro lugar da formação de uma iconografia muito poética e contemplativa que, no final do século XIV e inícios do século XV, substitui a atmosfera freqüentemente trágica. É também a constituição de uma inflexão muito particular, marcada por uma tristeza luminosa que opõe a vida terrestre ao reino da felicidade celeste no futuro.

Do ponto de vista da forma, observa-se uma volta à tradição helenística, com seu ideal de harmonia na composição, na cor e na beleza das figuras.

Andrei Rublióv

Existem até hoje poucos documentos sobre a vida e obra de Rublióv.

Nasce provavelmente por volta de 1360-1370, trabalha em Moscou e toma parte em 1405 com Teófano, o Grego na decoração da catedral da Anunciação no Kremlim. Em 1410 pinta o famoso "A Trindade" que lhe havia encomendado o pároco Níkon, sucessor de São Serguéi de Radoniéj.

Nos anos 1420 participa na decoração da catedral da Trindade antes de se tornar monge no mosteiro da Trindade e depois no de Spasso-Andronikov, onde morre por volta de 1427-1430.

Suas obras, entre as quais também as miniaturas mais antigas, apresentam todas elas características estilísticas marcantes: beleza plástica, harmonia ideal de proporções, elegância nos tecidos drapeados, domínio absoluto da tradição pictural bizantina, mas ao mesmo tempo, utilização de uma linha sintética para as figuras, com cores claras e fortes, imprimindo uma particularidade muito russa.

As personagens de Rublióv são compostas através de linhas arrendodadas, fluidas, onde as formas são modeladas e a composição, se a compararmos com outras obras russas e bizantinas mais antigas, é concebida de modo a fazer surgir a impressão de um certo distanciamento, de uma certa indiferença das figuras em relação ao espectador.

Além disso, estão plenas de uma espiritualidade elevada: elas parecem constituir a fusão da experiência secular da busca moral e religiosa bizantina e russa.

Depreende-se assim uma renúncia às preocupações terrestres, e a meditação sobre a vida futura conduzirá a um estado onde será possível a apreensão dos segredos mais íntimos da existência e a iluminação do espírito.

Por isso, essas figuras parecem desprovidas de sentimentos: elas não chegam até o mundo do espectador, mas se elevam para as esferas do ideal. Daí resulta a impressão extraordinária de uma harmonia grandiosa do espírito e do coração.

A particularidade da obra de Rublióv não reside, portanto, simplesmente na beleza física das personagens, mas igualmente em sua beleza interior. Desse ponto de vista, a arte de Rublióv reflete de maneira pertinente um dos aspectos essenciais do sistema espiritual do mundo bizantino: à iluminação da alma responderia a beleza carnal.

"A Trindade" é a obra capital do artista. Ícone principal da catedral da Trindade, estava situado na base inferior do iconostase, diretamente diante do olhar dos fiéis6. Destaca-se por seu laconismo: nenhum detalhe supérfluo parece querer afastar o contato espiritual com o mundo elevado e celestial.

Toda a cena é inspirada em um tema extraído do Antigo Testamento. O ícone representa o Pai, o Filho e o Espírito Santo na forma como eles teriam aparecido a Abraão, segundo a tradição cristã, isto é, sob a forma de três anjos. Eles estão sentados à volta de uma mesa baixa, tendo à mão o bastão de peregrino, e participam da refeição que lhes oferecem Abraão e Sarah.

A representação está plena de um simbolismo medieval. A composição circunscreve um octógono formado pelos bancos e os pés dos anjos na parte inferior e pelos detalhes arquitetônicos e a montanha na parte superior do quadro. Este Octógono é o símbolo da eternidade (o número oito, no pensamento medieval, designa a vida eterna, daí a forma octogonal das pias batismais nas igrejas).

A mesa ao redor da qual estão sentados os anjos simboliza o altar, a cabeça do bezerro, o sacrifício divino, os pés nus dos anjos, sua natureza divina, os bastões de Pelegrino, o caminho terrestre de um deles.

Os três anjos personificam a essência da divindade trinaria. O cálice sobre a mesa com a refeição de Abraão é o símbolo do sacrifício de Cristo, da Eucaristia. O edifício à esquerda, sobre o anjo que personifica a primeira pessoa da Trindade (o Pai) é o símbolo do Templo, da Igreja terrestre, da sabedoria divina; a árvore ao centro, sobre a segunda pessoa da Trindade (o Cristo), expressa a árvore da vida; quanto ao rochedo sobre o anjo da direita (o Espírito Santo), o Cosmos, ao mesmo tempo em que a Força e a Firmeza.

As três figuras estão situadas de modo que seus contornos exteriores se inscrevem num círculo, forma ideal e completa, e ainda, símbolo do céu, do sol ou da divindade, freqüente na arte dos primeiros eslavos. Um leve movimento anima o interior deste círculo graças à inclinação da cabeça do anjo central e de outros motivos rítmicos. O espaço ao redor do cálice, entre as figuras dos anjos da esquerda e da direita, repete a própria forma do cálice. A silhueta do anjo central aparece invertida sob ele, como se sua imagem se refletisse na água.

Também o espaço pictural do ícone está concebido de maneira específica: as figuras dos anjos laterais são apresentadas adiante da cena, enquanto que a do anjo central está um pouco recuada, mas, graças à intensidade da cor de suas vestimentas, ele nos parece ligeiramente à frente, no mesmo plano convencional das outras figuras.

“A Trindade" possui numerosas particularidades (ver nota no final) tanto do ponto de vista do conteúdo, quanto do ponto de vista puramente pictural. Trata-se da encarnação visível do dogma central da ortodoxia: a consubstanciação. A Trindade, unidade espiritual de três anjos, associava-se, sem dúvida, no contexto da cultura russa medieval à união das três virtudes: fé, esperança e amor.

A idéia da Trindade enquanto representação e enquanto conceito revelava um sentido que não era somente abstrato, mas excepcionalmente atual no período da Rússia moscovita e dos seus esforços de unificação, na medida em que se apresentava como antítese ao ódio secular e como suporte espiritual para alcançar a firmeza e a força em nome da concórdia nacional.

Segundo a lenda, o ícone foi pintado em louvor a São Serguei de Radoniéj que havia consagrado o santuário de seu mosteiro à Trindade para que através da contemplação da Santa Trindade pudesse ser vencida a angústia diante da discórdia do mundo.

Pode-se aprender, sem dúvida, num primeiro plano de observação do ícone, a tristeza luminosa dos anjos plena de compaixão, uma espécie de conversação silenciosa e meditativa e também uma ligeira lassidão expressa pela doce inclinação de suas cabeças, representação talvez de uma profunda atitude reflexiva em relação aos sofrimentos humanos.

Enfim, o ícone de Rublióv parece concentrar reminiscências da tradição artística mais antiga, sempre viva na cultura do mundo bizantino e por inter­médio de Bizâncio, marcante também em toda cultura da velha Rússia. São, em última análise, os princípios helenísticos que presidem a beleza dos anjos, jovens e graciosos, e o harmonioso equilíbrio da composição.

“A Trindade" representa uma das encarnações mais perfeitas do ideal ético e estético da cultura medieval russa, com seu laconismo das linhas, a pureza e a clareza das combinações cromáticas, o caráter contemplativo e equilibrado das figuras. Esta obra de Rublióv é considerada o apogeu da pintura iconográfica da escola de Moscou, assim como de toda a pintura russa antiga, ocupando um lugar de destaque na história da pintura universal.

O filósofo e teólogo P. A. Florensk (1882-1943) chegou a declarar sobre (A Trindade) de Rublióv: “De todas as provas filosóficas da existência de Deus, a mais convincente é justamente aquela não mencionada nos manuais e que pode ser formulada por meio do seguinte raciocínio:

“A Trindade” de Rublióv existe, logo, Deus existe.

Notas:

* A autora é Profª. Drª. de Teatro e Cultura Russa e chefe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filo, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)/USP.

I - O livro de M. Alpatov, Histoire de L'Art Russe, traduzido do russo por A. Karkovski e revisto pelo autor (Paris: Flamarion, 1975) traz um documentado capítulo sobre as principais manifestações das artes dos eslavos da comunidade primitiva.

2 - Ver especialmente Líkhatchov, D. Le Radici deI’Arte Russa - daI medioevo alle avanguardie - Milão: Bompiani, 1995, e também a sua Poétique Historique de Ia Litéreture Russe du X au XX siécle. Tradução, prefácio e notas de Françoise Lesourd. Lousanne: L' Age D'Homme, 1988.

3 - Ver o excelente ensaio de D. Likhatchov, "L'Art Mediéva] Russe". traduzido do russo por Françoise Lesourd e publicado em Histoire de Ia Litérature Russe no volume intitulado Des Origines aux Lumières, coleção dirigida por Efim Etkind, Geroges Nivat, Ilya Serman e Vitorio Strada, Ed. Fayard, 1992.

4 - Ver de Rak. P. Aproches de I'Athos. Tradução de Béatrice Talvard. Paris: de Guibert, 1998, em especial a descrição de um peregrino no monte Athos sobre a arte de pintar os ícones: "Como conseguir essa transfiguração sobre a prancha de madeira? Trata-se de um segredo do qual só se pode falar com uma espécie de medo sagrado, pois esse segredo poderá ser retirado daqueles que o explicarem demais. O corpo sobre o ícone vai resplandecer e se transfigurar. uma vez que, possuindo um mínimo de conhecimentos pictóricos, o pintor estará ele mesmo em vias de se transfigurar através do jejum e da prece. O cânone da prece, a regra que prescreve o número e quais preces é preciso dizer todo dia, antes de se aproximar da prancha de madeira, é tão importante, senão o mais importante. E o próprio trabalho do pintor de ícones se completa numa autêntica prece ininterrupta a Jesus". Op. cit., p. 61.

5 - D. Likhatchov considera que na Rússia os fenômenos que se aproximam da pré-Renascença ocidental não foram entretanto seguidos na cultura russa de uma Renascença propriamente dita. Segundo ele, a Rússia não conheceu a época da Renascença, mas somente fenômenos transitórios entre a Idade Média e a época moderna que se estenderam por muitos séculos. Ver a propósito "L' Art Médieval Russe". op. cit., p 592-593.

6 - De acordo com a primeira hipótese, "A Trindade" teria sido pintada para a igreja construída em madeira, reconstruída em 1411 depois de um incêndio em 1408, de onde ela teria sido transportada para o edifício em pedra em 1423-1424. Segundo uma Segunda hipótese, ela teria sido pintada em 1425-1427, quando um grupo de pintores realizava o iconostase da nova catedral em pedra. Mas os estudiosos consideram que a encomenda ao artista não estaria obrigatoriamente ligada à construção de um novo edifício. Ela pode ter sido incorporada nos anos 1410 no iconostase onde já se encontrava uma outra Trindade. Além disso, segundo especialistas, do ponto de vista do estilo o ícone de Rublióv é muito anterior ao iconostase da catedral da Trindade de pedra que data de 1425- I 427 e muito mais próximo de seus afrescos de 1408. Em 1918 o célebre ícone foi para o Museu de Zagorsk e desde 1929 encontra-se na Galeria Tretiakóv.

7 - Para uma análise detalhada, não só de "A Trindade", mas de toda a evolução da arte pictórica de Andrei Rublióv ver E. Smirnova, Ícones de L'Écolc de Moscou - XIV-XVII siecles, traduzido do russo por Denis Dabradie, Leningrado: d’Art Aurora, 1989 e também M. Alpatov, Andrei Rubliov, Moscou, 1972.

BIBLIOGRAFIA:

Alpalov, M.V. Andrei Rublióv, Moscou, 1972.

Histoire de L' Art Russe, Paris: Flamarion, 1975.

Etkind. E. et alii (org) Histoire de la Littérature Russe - Des Origenes aux Lumiéres. Paris: Fayard, 1992.

Lazarev, V.N. Andréi Rublióv, Moscou, 1960.

Likhatchóv, D. Lê radici de l' Arte Russa - daI medioevo alIe avanguardie, Milão: Bompiani, 1995.

Poétique Historique de La Litérature Russe du X au XX siecle. Lausanne: L'Age D'Homme, 1988.

Liubímov, L. Iskústvo drevnei Russi (A Arte da Antiga Rússia). Moscou: Instrução, 1996. Rak, P Approche de L' Athos, Paris: F.X. Guilbert, 1998.

Smirnova, E. Icônes de L'École de Moscou - XIV-XVII siécles. Leningrado: d"Art Aurora, 1989.

Abstract: This article intends to analyse the close connection between aesthetics and religion in the Russian Art end culturein the Middle-Ages.

Keywords : Russian art, Russian culture, Russian icon.

 

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