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Christos Yannaras

A FÉ VIVA DA IGREJA

Introdução à Teologia Ortodoxa

Tradução brasileira da versão francesa:
LUÍS ARTIGAS
Curitiba 1997

EDITION DU CERF
29, bd Latour-Maubourg 75007
Paris 1989

Capítulo 6: O Mundo

6.1 A concepção científica do mundo

ara o homem que nega ou recusa as questões de ordem metafísica e que não acredita numa possível experiência de revelação pessoal de Deus, o mundo e a realidade material tomam-se, com muita frequência, um refúgio ou um álibi que permite evitar o problema de Deus. Ele invoca as certezas da física para provar que as afirmações da metafísica não são nem certas nem dignas de fé. Recorre à clareza das medidas quantitativas para evitar a complexidade dos desafios qualitativos que controlam a vida.

Certamente, o conhecimento da realidade física parece objetivo, imediatamente controlável, acessível a toda inteligência individual. Os fenômenos físicos são sensíveis, tangíveis, e podem ser medidos, traduzidos em relações matemáticas e serem interpretados logicamente. A experiência histórica, sobretudo durante os dois últimos séculos, demonstrou que a inteligência humana pode submeter a realidade física, isto é, decifrar seus mistérios, obrigar as forças da natureza a prover às necessidades e desejos do homem, cuja vida adquire assim a comodidade, o bem-estar, os prazeres.

Assim, nos nossos dias, instaurou-se o mito do conhecimento eficaz, da “ciência” por excelência. Não podemos negar que, graças a ele, o homem escruta hoje em dia tanto os espaços infinitos quanto as partículas materiais ínfimas; pelo seu poder, conseguiu abolir as distâncias na superfície do planeta, dominar as doenças, acrescer a duração da longevidade humana. Portanto, o homem pode facilmente se orgulhar e pensar que ele consegue atualmente, graças à “ciência”, obter aquilo que outrora tentava em vão atingir com orações dirigidas a Deus. Se ainda não resolveu todos os seus problemas, ele tem certeza de ser capaz de tanto em pouco tempo, considerando o ritmo do progresso científico. Nos seus jornais de difusão popular, alguns editorialistas imaginativos cultivam nos seus leitores, mais ingênuos ainda, essa certeza de uma “ciência” todo-poderosa à qual eles reduzem todos os problemas e todas as questões do homem que ainda não obteve resposta. Na América tenta-se desde já, mediante uma participação financeira elevada, se garantir da supressão definitiva da morte, vitória que a “ciência” obterá dentro de alguns anos. Para tanto, basta permanecer até lá em estado de congelamento, prontos a voltar à vida. Sem dúvida nenhuma, esta nova divindade impessoal, a “ciência” propriamente mitificada, tornou-se nos nossos dias o ópio das massas, responsável pelo seu atordoamento metafísico.

Todavia, para sermos mais exatos, temos que reconhecer que a supervalorização das possibilidades da ciência e a busca, no campo da física, de argumentos destinados a deter o ateísmo, pertencem mais bem ao século passado. Este sintoma sobrevive atualmente menos nos laboratórios científicos do que na imaginação de pessoas ignorantes de que os circuitos comerciais se aproveitam amplamente, cultivando o mito da omnipotência e das capacidades milagrosas da “ciência”.

Na nossa época, o progresso das ciências certamente esclareceu o mistério do mundo que nos rodeia e respondeu questões que ficaram sem resposta durante séculos. Mas ela também nos revelou o caráter relativo dos nossos conhecimentos, e a bem fraca positividade de nossas ciências ditas “positivas”.

Não podemos fazer aqui uma análise detalhada desta constatação. Lembramos apenas que as novas conclusões científicas emergidas ao longo do nosso século exigem que renunciemos à certeza do conhecimento garantido pelos nossos sentidos ou pelas construções da nossa lógica. Esta certeza tinha se expressado sobretudo na geometria de Euclides e a física de Newton. Mas estas duas elaborações já demonstraram uma capacidade limitada e insuficiente para interpretar a realidade do mundo. Eles são certamente úteis para interpretar a nossa experiência sensível limitada. Mas sua validez não atinge o campo do infinitamente grande nem o do infinitamente pequeno. A relatividade do nosso conhecimento científico em relação à verdade do mundo foi claramente demonstrada pela primeira vez por Albert Einstein. As duas teorias da relatividade (especial e geral) mostraram que a observação científica somente pode produzir conclusões relativas, porque as próprias conclusões dependem sempre da situação e do movimento do observador. Simultaneamente, o princípio de indeterminação de Werner Heisenberg excluiu a previsão definitiva (e, consequentemente, toda possibilidade de determinismo) no campo da microfísica; além disso, ele ligou o resultado da observação científica não apenas ao fator “observador”, mas ao fato mesmo da observação, isto é, à relação estabelecida em cada ocasião entre o observador e os objetos observados. Paralelamente, a análise dos fenômenos da radiação térmica feita por Max Planck e a teoria dos quanta de Niels Bohr provaram que o comportamento da luz se identifica com a constituição ou a estrutura do átomo, isto é, com a maneira como a menos quantidade de energia se apresenta à observação. Manifestando-se de maneira tanto corpuscular quanto ondulatória, a menor “Mônade” de matéria ou de luz representa uma transferência de energia. Isto significa que o próprio fundamento (a “hipóstase”) da matéria é energia, que a matéria possuí as qualidades constitutivas da luz, e que a luz é, de alguma maneira, a matéria ideal.

6.2 A constituição «lógica» da matéria

Durante muitos séculos, a filosofia colocou-se a pergunta: o que é a matéria? Uma solução simples foi simplesmente evitar a questão e considerar a matéria como algo evidente e existente desde a origem, ou ainda dizer que ela foi criada por Deus, sem explicar a maneira como, do imaterial, surgiu o material, nem como, do incorruptível e do intemporal, surgiram o corruptível e o efêmero. Nestas duas interpretações (auto existência ou criação por Deus), a matéria permanecia igualmente inexplicada. Era também trágico presenciar as discussões entre materialistas e idealistas (às vezes sangrentas), pois as duas partes defendiam posições metafísicas igualmente arbitrárias, com apenas nomes diferentes.

Antes de chegar às explicações da física contemporânea, na história da filosofia encontramos uma única proposta que explique a constituição da matéria. Foi formulada pelos Padres gregos da Igreja. São Gregório de Nissa e São Máximo o Confessor viram a matéria como um fato de ordem energética. Consideraram a sua constituição como resultante do concurso e a união de “qualidades lógicas”. Tomado no seu conjunto, ou em cada um dos seus aspectos, o mundo é um logos em ação, uma energia criada pessoalmente por Deus. De acordo com o relato do Gênesis, Deus criou todas as coisas somente pelo seu verbo (logos): “Ele disse, e assim foi”. O Verbo de Deus não passa, mas se hipostasia como acontecimento traduzido em ato, “feito natureza em seguida”. Assim como o verbo humano de um poeta forma uma nova realidade, o poema, exterior a ele, mas ao mesmo tempo efeito e manifestação do seu próprio verbo, da mesma maneira o Verbo (logos) de Deus é realizado dinamicamente “no fundamento e na formação da criação”.

Retomemos a mesma imagem: o poema, obra do poeta, é uma conjunção, uma união de palavras (logoi). Mas para que exista um poema, a simples junção de logoi é insuficiente, pois é preciso também a sua organização, a sua conformação, a sua síntese e a sua construção. Este arranjo dos logoi que constituem o poema é uma realidade nova, de “essência” diferente da do poeta. Todavia, esta realidade revela sempre o logos da alteridade pessoal do poeta. Além disso, ela cria de maneira contínua novas realizações de vida: um poema é um logos traduzido em ato e que age de maneira dinâmica ao longo do tempo; cada nova leitura dele é uma nova regeneração vivida, uma relação “lógica” diferente, o ponto de partida de novos desafios criadores.

Nada do que constitui um corpo material é corporal! diz São Gregório de Nissa, nem sua forma, nem sua cor, nem seu peso, nem sua densidade, nem sua composição, nem suas dimensões, nem seu grau de umidade, nem seu calor interno. Tudo isto é um conjunto de “expressões” (logoi) que, convergindo e juntando-se numa unidade, se tornam matéria. Na linguagem da física moderna, retomaríamos a constatação de São Gregório de Nissa utilizando apenas um linguajar diferente: falaríamos de longitude de ondas, de campos eletromagnéticos, de radiação térmica, de relações de carga etc., isto é, a medidas de energia, a logoi que, também aí, determinam um acontecimento traduzido em ato: a matéria. A maneira atual de dizer o que seja a matéria é matemática: as propriedades seguem leis lógicas, e as determinações qualitativas seguem relações (ana-logias) de grandeza. Buscando a estrutura da matéria, a física contemporânea não descreve uma entidade determinada, antes detecta estados energéticos que “emergem” no desafio da experimentação. As variedades de matéria se reduzem às diferenças entre os átomos. Quanto aos átomos, eles se diversificam segundo a combinação das suas cargas elétricas positivas e negativas; são, por assim dizer, manifestações de uma única e mesma realidade: a energia.

Utilizando a linguagem dos Padres gregos, ou a da física contemporânea, o resultado é o seguinte: a realidade da matéria constitui um acontecimento traduzido em ato, acessível ao homem enquanto possibi1idade de logos. O logos humano encontra no seio da natureza outro logos. Assim o conhecimento da natureza é somente ana-lógico ou, melhor dizendo, “dia-lógica”. O logos caracteriza a pessoa; revela a capacidade inicial do existente antes de qualquer outra possibilidade de uma realização “hipostática”. Ele é original e indescritível, a consciência de si própria da pessoa, na sua alteridade e na sua liberdade, na sua auto revelação e na sua manifestação criadora.

É no interior do mundo que o homem pessoal encontra o Deus pessoal. Ele o encontra não num face a face, mas escondido, assim como encontramos um poeta, escondido, através do logos da sua poesia, ou um pintor através do logos das suas cores. Pois Ele é “o Deus que ordena à luz sair das trevas” (1Cor 4, 6). Todavia, para poder conhecê-lo verdadeiramente na sua alteridade pessoal, não bastam nem sequer as conclusões mais surpreendentes da física contemporânea. É somente “nos nossos corações” que pode resplandecer “a luz do conhecimento da glória de Deus”, e somente “na pessoa do Cristo Jesus” (2Cor 4, 6). O nome é a única revelação possível da pessoa, e o nome de Deus nos foi entregue na pessoa histórica de Jesus, “o nome acima de todos os nomes”, glória e revelação de Deus Pai (Fl 2, 9-11).

“O Deus que disse: resplandeça a luz no meio das trevas, é Aquele que resplandeceu nos nossos corações, para fazer brilhar a claridade do conhecimento da glória de Deus na pessoa do Cristo Jesus” (1Cor 4, 6). É Deus quem nos revela Deus. Ele se auto desvenda na claridade de um conhecimento que não deve ser considerado como significado ou como conceito, mas como nome ou pessoa. Este conhecimento é o Cristo Jesus, a glória-revelação de Deus. A claridade deste conhecimento acontece nos nossos “corações”, no mais fundo da nossa identidade pessoal, lá onde cada um de nós é diferente da sua educação, do seu caráter, da sua herança, da sua psicologia, da sua máscara social, e se identifica somente com o seu nome. É nos nossos corações que o nome de Jesus manifesta a hipóstase pessoal de Deus. Esta revelação-desvendamento é, por excelência, o acontecimento de relação, de adoção e de chamada “do não-ser ao ser”.

O Deus revelado nos nossos corações é Aquele mesmo que disse: “Resplandeça a luz no meio das trevas”, e que tirou do não-ser o ser, a matéria original ideal. Seu mandamento criador torna-se matéria, energia criada, suporte do seu logos, isto é, do Logos que também faz brilhar nos nossos corações a claridade do conhecimento da sua Pessoa. Este primeiro mandamento criador: “Haja luz”, contém todas as potencialidades necessárias para a realização da existência criada, particularmente a possibilidade da existência do mundo e de cada um de nós, da existência dos nossos vasos de argila. Mesmo situando-se a milhões de anos de nós, este mandamento que inclui o sentido do mundo e do seu início temporal pode ser encontrado no mais fundo da nossa identidade pessoal. Pois é lá que se manifesta o suporte pessoal deste mandamento, Jesus, Deus o Verbo.

A verdade do mundo, segundo a Igreja, é inseparável do conhecimento de Deus, e o conhecimento de Deus é inseparável da pessoa do Cristo. A pessoa do Cristo, pelo mandamento do Logos que se situa na origem dos tempos e no mais fundo dos nossos corações, é inseparável da claridade do conhecimento que nos ressuscita à vida, na nossa adoção por Deus.

6.3 Energias naturais

Falando precisamente do Deus trinitário e da maneira como podemos expressar a sua existência, temos distinguido a realidade formulada pela palavra essência ou natureza, e a realidade formulada pela palavra pessoa ou hipóstase. No que dissemos sobre o mundo, utilizamos a palavra energia para expressar uma terceira realidade, que é diferente tanto da essência quanto da hipóstase, mas que funda o existente pelo mesmo título delas, ao mesmo tempo que permanecendo ligada a elas.

De fato, a teologia da Igreja interpreta a realidade da existência, a aparição e a manifestação do ser, a partir destas duas distinções fundamentais: ela distingue a essência ou natureza, da pessoa ou hipóstase, distinguindo também as energias, tanto da natureza quanto da hipóstase. É por meio destas três categorias fundamentais: natureza, hipóstase, energias, que a teologia resume a maneira de existência de Deus, do mundo e do homem.

Mas, o que nós designamos exatamente com a palavra energias? Designamos a capacidade que possui a natureza ou essência de fazer conhecer a sua hipóstase ou existência, a fazer com que possa ser conhecida e participada. Esta definição pode ser esclarecida com um exemplo tirado da nossa experiência imediata, falando das energias da nossa natureza ou essência humana.

Todos os homens possuem uma inteligência, uma razão, uma vontade, desejos, imaginação; todos os homens constroem, amam, criam. Todas estas faculdades, e muitas outras análogas, são comuns a todos os homens; assim, dizemos que pertencem à natureza ou essência humana. São capacidades ou energias naturais que diferenciam o homem de todos os outros seres.

Contudo, estas energias naturais, mesmo sendo comuns a todos os homens, são manifestadas e realizadas por cada homem de maneira única, diferente e insubstituível. Com efeito, todos os homens possuem uma inteligência, uma vontade, uma capacidade de desejar, uma imaginação; mas cada um pensa, quer, deseja e imagina de maneira absolutamente diferente. Assim, dizemos que as energias naturais distinguem o homem de todos os outros seres, mas também que elas se manifestam de maneira tal que distinguem cada homem dos seus congêneres. As energias naturais são a maneira mesma em que se revela e se manifesta a alteridade de cada hipóstase humana, isto é, de cada pessoa humana.

Não há outra maneira de conhecer a alteridade pessoal do homem, fora da manifestação das energias naturais. As energias naturais nos permitem conhecer a alteridade da pessoa, participando na maneira (no “como”) da sua manifestação. A maneira como se diferenciam o verbo de Baudelaire e o de Saint-John Perse, ou o amor de nosso pai e a ternura da nossa mãe, é algo impossível de determinar objetivamente, senão por expressões relativas e por imagens que funcionam como analogias. Para conhecer esta diferença, nós temos que participar, experimentar a participação no verbo ou no amor da outra pessoa. Dizíamos nas páginas precedentes que, para conhecer alguém, é preciso ter uma relação com ele. Agora completamos esta reflexão, dizendo que que a relação não significa apenas um simples encontro, uma visão ou observação imediata, mas uma participação nas energias que revelam a alteridade da pessoa: a expressão do rosto, a palavra, as manifestações de amor etc.

São Máximo o Confessor coloca a respeito uma observação muito importante. Ele constata que existem duas espécies de energias: as energias homogêneas e as energias heterogêneas em relação à natureza do sujeito agente. Assim, existem energias que se manifestam de maneira homogênea (do mesmo gênero, do mesmo tipo, da mesma qualidade) em relação à natureza do sujeito agente. E existem energias reveladas por essências de um gênero diferente da natureza do sujeito agente. Por exemplo, a voz humana, a expressão articulada, é uma energia verbal “homogênea” em relação à natureza do homem. Mas a energia da palavra pode igualmente ser revelada por essências “heterogêneas” em relação à natureza do homem; estas outras essências, como a escrita, a cor, o mármore, a música etc., podem então dar forma à palavra.

Assim podemos entender como seja possível conhecer uma pessoa ao mesmo tempo direta e indiretamente: a conhecemos diretamente quando a encontramos, ouvimos suas palavras, vemos a sua expressão, o seu olhar, o seu sorrir, quando a amamos e ela nos ama. E conhecemos uma pessoa indiretamente quando apenas lemos seus escritos, ou ouvimos suas composições musicais, ou somente vimos os quadros que pintou.
Nestes dois procedimentos, o conhecimento é, sem comparação, mais completo, do que qualquer informação “objetiva” sobre a pessoa. Nós poderíamos, perfeitamente, juntar todas as informações disponíveis sobre a vida de Van Gogh, por exemplo, e ler todas as suas biografias. Porém, somente conheceremos a pessoa de Van Gogh, o caráter único, diferente e insubstituível da sua existência, através da contemplação dos seus quadros. É aí que encontramos um logos que é somente seu e que o diferencia de qualquer outro pintor. Quando já vimos bastantes quadros de Van Gogh e encontramos mais um, posteriormente, dizemos em seguida: é um Van Gogh. Distinguimos imediatamente a alteridade do seu logos pessoal, a unicidade da sua expressão criadora.

Mas em todo caso, este conhecimento da pessoa de Van Gogh através da descoberta de suas obras, mesmo sendo incomparavelmente mais completa que as informações biográficas sobre a sua pessoa, não deixam de ser também um conhecimento indireto.

Para que este conhecimento seja direto, seria necessário encontrar pessoalmente Van Gogh, falar e viver com ele, amá-lo e ser amado por ele. Todavia, aqui queremos insistir na possibilidade de conhecer uma pessoa pela manifestação do seu logos (da sua alteridade existencial) através de essências heterogêneas em relação à essência da própria pessoa. Van Gogh, segundo a sua essência, é um homem, enquanto um dos seus quadros, na sua essência, é uma tela colorida. Todavia, as cores espalhadas pela tela tornam-se um logos que desvenda o “mistério” da pessoa, a unicidade e a alteridade de Van Gogh. A energia criadora de Van Gogh, a sua criação como pintor, torna possível a nossa própria participação no conhecimento da sua pessoa.

Mais uma observação, a partir do mesmo exemplo: nós todos que reconhecemos a unicidade do logos de Van Gogh contemplando um dos seus quadros, participamos neste logos de uma maneira pessoal, ou seja, única, diferente e insubstituível, sem que esta participação pessoal de cada um “fragmente” o logos revelador da alteridade de Van Gogh em tantas porções quanto participantes através do quadro. Dito de maneira pessoal, o logos permanece uniforme e indivisível, enquanto, ao mesmo tempo, “pode ser participado por todos de maneira única”. O quadro (como o poema, a estátua, a música, a voz humana) representa a energia do logos de um ser humano, o pintor: por outras palavras, a possibilidade para todos nós, que contemplamos o mesmo quadro, de participar na alteridade da mesma pessoa.

6.4 Contemplação da natureza

Podemos, agora, compreender mais profundamente o que a Igreja entende quando define mundo como um efeito das Energias de Deus, uma revelação do logos criador de Deus (da Pessoa de Deus Verbo) através de essências “heterogêneas” em relação à Essência de Deus. A realidade material do mundo e a infinidade das espécies ou essências que formam esta realidade são um efeito da energia livre, pessoal e criadora de Deus. O mundo é essencialmente (segundo a sua essência) diferente de Deus, embora seja ao mesmo tempo um logos revelador da alteridade pessoal de Deus.

Os Padres da Igreja chamam contemplação da natureza o estudo do logos de Deus na natureza, a descoberta da sua alteridade pessoal em cada aspecto da beleza e da sabedoria do mundo. A própria matéria do mundo é um acontecimento realizado dinamicamente, uma energia “heterogênea” em relação à Natureza de Deus, uma energia criada do Deus incriado. Assim, distinguimos a energia criada de Deus, constitutiva do mundo, das suas Energias incriadas que são “heterogêneas” em relação às criaturas e “homogêneas” em relação a Deus. Estas Energias incriadas são comumente chamadas Graça, isto é, vida gratuita oferecida por Deus ao homem.

Conhecemos indiretamente a Face de Deus estudando a realidade do mundo, a alteridade do logos das energias divinas criadas que constituem e formam o universo natural. E conhecemos diretamente a Face de Deus pelas suas energias incriadas, pelas quais Deus pode ser “totalmente participado”, e “participado por todos de maneira única”, permanecendo simples e indivisível. Pois é assim que Ele oferece ao participante aquilo que Ele possui “segundo a natureza”, exceto a “identidade segundo a essência”, e torna o homem, de acordo com a palavra da escritura, “participante da natureza divina”.

6.5 «Mediador» - «microcosmos»

Todavia, para a Igreja, a existência e a verdade do mundo não representam somente e simplesmente a possibilidade de um conhecimento indireto de Deus para o homem. O “fim” (telos) ou a finalidade do mundo não é apenas indireto. Quando a Igreja afirma que a matéria do mundo é energia e que o universo é um acontecimento realizado dinamicamente, ela pressupõe um “fim” ou uma finalidade com vistas ao qual o acontecimento do mundo ê “realizado”.
Para os Padres gregos, pelo menos, a realidade do mundo é energia, pois o mundo é criado, sendo uma criação de Deus. E o criado, para os Padres, é um ser que tem sua causa e seu fim fora de si mesmo, inversamente à existência incriada de Deus que é sua própria causa e seu próprio fim, e que constitui, sozinha, o ser absoluto e ilimitado.

Quando dizemos que os seres criados têm a causa e o fim da sua existência fora deles mesmos, estamos querendo dizer que Deus criou os seres (Ele é a sua causa) e que Ele os criou com uma finalidade. A natureza dos seres é “energética”, pois sua própria existência tende para algo que não é o simples fato de existir, mas a realização de um fim com vistas ao qual eles existem.

A partir da revelação de Deus na História e na Bíblia, os Padres deduzem a finalidade com vistas à qual Deus criou todas as coisas: a fim de que todos os seres participem na vida de Deus, se tornem “glória”, isto é, revelação de Deus, para que assim Deus seja “tudo em todos” (1Cor 11, 28). Na nossa linguagem, com suas limitadas capacidades, dizemos que Deus é a plenitude da existência e da vida, e que quer fazer participar todos os existentes nesta plenitude. Ele quer que todos os existentes sejam uma expressão da vida divina, uma participação na comunhão de amor que constitui a maneira de existência de Deus, o Ser de Deus.

O acontecimento realizado do mundo, ainda, não se dirige automaticamente para a finalidade ou o “fim” que é a participação na vida de Deus; a energia que constitui a matéria do mundo não é um impulso autônomo e auto dinâmico para a plenitude existencial. A inserção da natureza do criado na vida do incriado não pode ser um efeito da necessidade, antes é um acontecimento de liberdade. A única existência criada que pode realizar a vida como liberdade, é o homem. Eis por que a Sagrada escritura, e a sua interpretação patrística, vê no homem o “mediador” com vistas à realização do “fim” existencial (da finalidade existencial) da criação toda. A liberdade humana se interpõe na natureza do criado como a brecha de uma possibilidade entre o dado e o projetado, entre a existência e a “finalidade” da existência.

Na linguagem da Igreja, o homem é o sacerdote da criação inteira de Deus; ele possui a capacidade de conduzir a Deus a natureza criada, de estabelecer a “lama” do mundo no trono da Divindade. Encontramos amiúde nos Padres a expressão “o homem é um microcosmos”, pois pela sua composição natural ele recapitula os elementos de todo o universo. Mas, depois da queda do homem, da sua mudança “contra a natureza” (como veremos no capítulo seguinte), estes elementos se encontram, nele e no mundo, em estado de fragmentação e de divisão. Permanecendo, depois da queda, apesar de tudo, uma existência pessoal, uma hipóstase lógica e psicossomática, o homem conserva a possibilidade de realizar dinamicamente na sua pessoa a unidade do mundo, de recapitular o logos do mundo numa resposta pessoal à chamada de Deus, para estabelecer uma comunhão e uma relação entre o criado e o incriado; de revelar o logos universal do mundo como logos pessoal de ação de graças da criatura para o seu criador; de conferir à energia que constitui o mundo a direção e o impulso que correspondem ao seu fim existencial. Por isso, segundo a própria palavra da Escritura, “a criação inteira aspira pela revelação dos filhos de Deus... e esta criação, liberada da servidão da corrupção, entrará na liberdade da glória dos filhos de Deus. Sabemos, com efeito, que a criação inteira geme até este dia, nas dores do parto” (Rm 8, 19-22).

Nos nossos dias, uma educação religiosa errada levou muitas pessoas a considerar a Igreja como um meio ou como um instrumento capaz de garantir a salvação individual de cada um. Essas pessoas pensam a “salvação” como uma espécie de vaga sobrevivência em “outro” mundo, depois da morte. Na realidade, todavia, a Igreja confere a cada homem a imensa responsabilidade - e a honra - da salvação do mundo inteiro, deste mundo cuja carne é a nossa carne e cuja vida é a nossa vida. Para a Igreja, a salvação é a libertação das correntes da corrupção e da morte, a transformação da sobrevivência em plenitude existencial, a participação do criado na maneira de existência do incriado.

6.6 Aprendizado ascético

A verdade da Igreja sobre o mundo não é uma tese teórica, uma teoria abstrata, uma interpretação “dogmática” da realidade. Trata-se de um conhecimento que se adquire dinamicamente, de um fato de relação com o mundo. O homem não pode atingir a verdade do mundo enquanto considerar os dados da realidade natural como objetos neutros, úteis para satisfazer suas próprias necessidades e desejos. Limitando-nos a esta concepção “objetivante” e utilitária do mundo, podemos perfeitamente desenvolver de maneira prodigiosa nossas ciências “positivas” e suas aplicações tecnológicas. Mas o mundo permanecerá sendo para nós um dado irracional (“a-lógico”), como uma simples aparência pendurada do nada.

Todo artista verdadeiro vai, em princípio, além da aproximação “objetiva” do mundo. Por exemplo, um pintor tenta reproduzir nas suas telas a unicidade de um objeto, um rosto, uma paisagem, através do seu olhar. Na impressão estética, ele fundamenta e representa a sua relação com as coisas, singular e insubstituível. Um clichê fotográfico da realidade não lhe interessa, pois aí ele seria um “cientista” e não um pintor. Ele é pintor pelo fato de tentar descobrir, mesmo nos objetos de uso cotidiano mais insignificantes, o “resplendor” da unicidade de um logos que se dirige a ele pessoalmente. E a recepção deste logos constitui outro logos pessoal: a expressão pictórica deste pintor, também singular e insubstituível.

Num escalão superior situam-se aquela aproximação e atitude a respeito do mundo que a Igreja chama ascese. A ascese é a prova da renúncia à nossa tendência egocêntrica que considera todas as coisas como objetos neutros, submetidos às nossas necessidades e desejos. Pela privação e a submissão às regras comuns da ascese, combatemos precisamente a nossa exigência egocêntrica e deslocamos o eixo da nossa vida, do nosso eu, para a nossa relação com o mundo que nos rodeia. Pois a relação somente começa quando renunciamos realmente à nossa tendência de submeter tudo. Aí começamos a respeitar o que nos rodeia, a descobrir que não se trata de simples objetos, ou instrumentos impessoais que encontramos nas coisas, isto é, os resultados de um ato de uma Pessoa criadora. Descobrimos o caráter pessoal dos dados do mundo, uma unicidade de sentido em todas as coisas, uma capacidade de relação, a ocasião de uma relação de amor com Deus. A nossa relação com o mundo torna-se então uma relação indireta com Deus, o poeta-criador do mundo, e a utilização real do mundo torna-se um estudo contínuo da verdade do mundo, um conhecimento sempre mais profundo, inacessível à ciência “positiva”.

Vou me arriscar, mais uma vez, a colocar um exemplo. Um objeto banal de uso cotidiano, como um porta-canetas, uma pena, passa pelas nossas mãos indiferentes e o utilizamos sem lhe conceder uma importância particular, de maneira que, se o perdermos, sem muito pensar o substituímos por outro. Mas se este mesmo objeto banal fosse para nós um souvenir, como se diz, se se trata de um presente oferecido por uma pessoa querida, então para nós o seu valor tem a medida do nosso amor pela pessoa que nos lembra. Sempre que utilizamos, não aproveitamos simplesmente da sua utilidade, mas é como se, através deste objeto, recebêssemos diretamente uma ajuda da pessoa amada. Assim um objeto, neutro por outro lado, torna-se um acontecimento de relação, ocasião de uma ligação e de uma relação pessoal, uma reafirmação contínua do amor. E este exemplo, afinal, é ainda insuficiente, pois o mundo não é simplesmente um presente-souvenir de Deus feito ao homem. É uma polifonia de logoi, realizada dinamicamente, que encarna o amor divino numa hipóstase de criação, e que convida, ao mesmo tempo, a liberdade humana, a harmonizar esta polifonia criada, num consentimento e numa aceitação do amor divino.

6.7 Utilização do mundo

A cosmologia eclesial que, na prática, é estudada na ascese, pode ser a maneira universal de viver e utilizar o mundo. Não somente no coração ou no “levedo” da comunidade eucarística, como também nas dimensões mais amplas de um conjunto social numa época histórica determinada, de maneira a constituir a expressão de uma civilização humana. Expressão de uma arte, de uma técnica, de uma economia e de uma política, que respeitem o mundo e o utilizem como um Dom de amor, que estude o logos da unicidade das coisas, e a capacidade da matéria para dar um corpo à relação do homem com Deus e a participar na vida do criado.

Uma civilização como esta floresceu certamente na época chamada bizantina e pós-bizantina do helenismo. Este não é o lugar de explicitar a maneira como em Bizâncio as instituições jurídicas, a organização da economia e as transações privadas expressavam na vida prática a cosmologia eclesial. Muito já foi escrito a respeito, e seria suficiente estudar nem que fosse a arquitetura de uma igreja bizantina ou a técnica da colocação das pedras para perceber imediatamente o caráter desta civilização, a maneira como o homem respeita e se aproxima do logos do material cuja matéria evita violar, submetendo-a às intenções do seu próprio pensamento: utilizando os materiais do mundo, ele se exerce na auto abnegação e na renúncia à vaidade egocêntrica, evidencia a capacidade do próprio material para “se tomar logos”, para instaurar um “diálogo” com o artesão, diálogo que nenhuma técnica racional consegue repetir atualmente.

Vivemos atualmente numa civilização que se coloca nos antípodas de Bizâncio; por isso, é quase impossível para nós acompanhar a ética associada a esta utilização do mundo e à verdade que a domina. Hoje em dia, a nossa relação com o mundo torna-se sempre mais indireta; a máquina se interpõe, submetendo a natureza e suas forças às exigências do pensamento, neutralizando as resistências que o material pode apresentar para a eficácia da nossa programação. Esta maneira de se impor individualmente à natureza é para nós perfeitamente normal, de maneira que se inscreve no nosso caráter ou temperamento: virando ou apertando um botão, temos a luz, o calor, a ventilação, o movimento, a telecomunicação, e mil outros resultados imediatos. Nada há de mau em todas estas atividades, desejáveis e respeitáveis, pois simplificam a vida do homem, diminuem o esforço que outrora ele tinha que fazer para viver. Mas elas liberam igualmente a insaciável bulimia egocêntrica do homem, sua tendência instintiva a possuir, a consumir, a desfrutar sensualmente sem freios nem limites.

Seja como for, o constrangimento individualista que submete o mundo, tal como a técnica nos garante hoje em dia, é a aplicação efetiva de uma cosmologia que considera a natureza como um dado neutro e impessoal ao serviço das necessidades e desejos do homem: não há nem um fio de suspeita de relação pessoal com o mundo para a realização da vida como acontecimento de comunhão e relação. Mas a aplicação efetiva de uma cosmologia tão radicalmente anticristã revela-se nitidamente destrutora da vida; é uma ameaça direta de morte para a natureza e para o homem. Atualmente, chamamos esta ameaça: poluição ambiental, esgotamento dos recursos energéticos, alimentação inadequada. A atmosfera envenenada das grandes cidades, as águas estagnadas, as terras que ficaram estéreis, os pesticidas tóxicos, e todos os demais sintomas de pesadelo, no meio dos quais vive hoje em dia o homem das sociedades industriais, manifestam o erro trágico cometido pelo homem na sua relação com o mundo, erro que está assumindo rapidamente as dimensões de uma ameaça mortal. Isso que nós chamamos “progresso” e “desenvolvimento”, manifestou-se como uma violação e uma corrupção da natureza, e, para o homem, um tormento inevitável e uma ameaça de morte.

A necessidade de estudar com respeito e humildade a verdade do mundo, de encontrar novamente uma relação ajustada com ele, é atualmente - pela primeira vez na história do homem - uma questão, ao pé da letra, de vida ou morte.

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