XVI - Um só
Cristo e Uma só Igreja
uma época como a nossa, marcada pelo sectarismo, somos levados a pensar que
as palavras: “Creio na igreja una...católica” se referem a uma unicidade que
diz respeito à confissão à qual um cristão pertence individualmente, seja
ela a ortodoxa, ou a católica, ou a protestante. Disso passamos a afirmar
que a catolicidade é considerada como necessariamente indicativa de uma
unidade sectária. Um fiel ortodoxo afirma que a unicidade da igreja consiste
simplesmente na sua ortodoxia e que a catolicidade compreende apenas os
ortodoxos espalhados pelo mundo. Tal pretensão pode ser tanto a de um
católico como a de um protestante. Assim, o conceito teológico da natureza
da igreja se refere a cada cristão tomado individualmente como se a unidade
fosse restringida pelos limites do dogma, o qual delimita também a
catolicidade, reduzindo esse último aspecto a uma simples dimensão espacial
da Igreja.
Em um conceito assim restrito que se submete fanaticamente a modos de
pensamento e a perspectivas paroquiais, perde-se a realidade da natureza
infinita da igreja que transcende a terra dos homens e seu pensamento. A
Igreja é muito maior do que o homem! É maior do que os céus e a terra,
porque o homem jamais encheu a Igreja e nunca será capaz de fazê-lo, nem
mesmo se o mundo inteiro com todas as suas ideologias e estruturas fosse
salvo: é Cristo o único que pode encher a Igreja. Nele habita toda a
plenitude que pode plenificar tudo e todos: pode encher o homem e sua mente,
o tempo e o espaço. O universo com os céus e a terra não podem absolutamente
conter a Igreja, ao contrário, é a Igreja que contém os céus e a terra do
homem. A Igreja é a nova criação, o novo céu, a nova terra, o homem novo. Na
natureza desta nova criação são engolidos o velho céu e a velha terra, como
se não existissem mais, mesmo se na realidade continuem a existir. Do mesmo
modo, a morte é engolida pela vida, de modo a não ter mais poder, e o
corruptível é absorvido pelo incorruptível: tudo se torna novo, vivo,
imortal e puro. Aquilo que é novo, sob este aspecto, pertence ao eterno,
inalterável Todo, enquanto que aquilo que é velho vai desaparecendo, átimo
após átimo, por causa de sua natureza essencialmente mutável.
A Igreja, portanto, naquilo que se refere à sua natureza católica, é maior
do que o homem, do que seus conceitos, do que suas estruturas, do que seus
dogmas; maior do que o universo com seus céus imensos, do que a vasta terra
com toda a sua caducidade; maior do que todos os acontecimentos do tempo, do
início ao fim.
A igreja é o novo Todo: esta totalidade é derivada da natureza de Cristo -
do qual tem origem - e inclui tudo aquilo que se refere ao homem e a Deus
através da encarnação.
Então, a Igreja é o “segundo Todo”, em outras palavras católica, porque
encerra em si, corpo de Cristo, tudo aquilo que pertence quer ao homem quer
a Deus, recolhendo-o numa única entidade que é, ao mesmo tempo, visível e
invisível, finita e infinita, inserida na esfera do tempo e do espaço, mas
eterna e metafísica.
O termo católica deriva do grego katá (“em acordo com”) e hólos (“todo”): o
significado primário é “totalidade”. No nosso caso, o termo indica aquilo
que transcende a totalidade da existência finita. Trata-se de um “todo”
inalterável, infinito, que não pode ser partido nem contado: é UNO, um
“todo” fixo, análogo ao conceito de natureza de Cristo que é indivisível,
sem confusão e sem mudança.
Tal é a Igreja, que segue a Cristo em todos os seus aspectos: como Cristo é
único na sua pessoa, inclusive na sua natureza, simultaneamente todo na sua
existência temporal e eterna, local e universal, assim também é a Igreja,
una e católica. Disto deriva que todo aquele que está na igreja, é
necessariamente uno e deve inevitavelmente ser uno, por causa da
catolicidade da Igreja; em outras palavras, a Igreja tem a capacidade
divina, obtida através de Cristo, de tornar toda pessoa individual una com
Deus. Todo aquele que está em Cristo é de Deus e é um com Deus.
Os instrumentos de que a Igreja se serve para atuar a sua catolicidade são
os sacramentos: através deles, de fato, todos os fiéis são introduzidos
juntos na união com o corpo místico de Cristo, tornando-se assim um só corpo
e um só espírito; eles têm acesso à natureza da igreja una e católica, pois
o corpo de Cristo na Igreja constitui o segredo de sua catolicidade, a sua
pessoa, o segredo da sua unicidade.
Se os fiéis não alcançam um estado de integridade de coração e de
simplicidade de mente, originado da participação no único Corpo e, portanto,
um estado de amor único, originado da pessoa de Cristo que reina sobre todas
as coisas, então os sacramentos se reduzem a uma realidade puramente formal,
que conduz à discórdia intelectual e dogmática. A formalidade sacramental ou
dogmática é incompatível com a realidade do único Corpo que encerra todas as
coisas e que dá vida a todos os que dele se alimentam e se tornam um nele.
Na Igreja, o corpo de Cristo é fonte de vida e de unificação, é ao mesmo
tempo vivo e doador de vida e é capaz de abolir todo tipo de barreira criada
pelo tempo e pelo espaço, pela mente ou pelos instintos do homem, quer se
trate de barreiras sociais (nem escravo, nem livre em Cristo), quer raciais
e culturais (nem judeu, nem grego, nem bárbaro nem cita) quer sexuais (nem
homem, nem mulher): cf. Gl 3,28). Na Igreja, o corpo místico de Cristo é
aquela fonte de energia que a torna capaz de tudo reunir na própria natureza
única e católica.
A Igreja é a nova criação: como Adão foi a cabeça da velha criação humana e
aquele do qual surgiram todas as raças, os povos, as tribos e as categorias
do gênero humano, assim Cristo tornou-se o segundo Adão e a cabeça da nova
criação humana. Ele é o único do qual nasceu o homem novo como raça
escolhida (por raça entende-se aqui a cristã-divina), como povo justificado
(por povo se entende aqui aqueles que foram reunidos pela justificação que
vem de Cristo e não do esforço pessoal) e como nação santa (aqui a única
geradora é o santo batismo e não um ventre materno). O grande segredo que
explica o poder de Cristo de unificar raças e povos e de abolir todas as
barreiras entre todos os habitantes da terra (isto é, a catolicidade
eclesial) consiste no seu ser Deus encarnado, Filho de Deus e Filho do homem
ao mesmo tempo. A divindade de Cristo operou de modo a que sua humanidade
fosse além de qualquer pertença de raça, de nacionalidade, de
particularismos, ao ponto mesmo de superar o pecado e a morte. A filiação de
Cristo com relação a Deus permitiu-lhe reunir a humanidade numa única
filiação dada por Deus. Por isso, todo aquele que participa da carne de
Cristo vê nele dissolver-se todo tipo de barreira, conjuntamente com o
pecado e a morte. Ele é feito um com cada ser humano, é um homem novo,
criado de modo novo e puro, à imagem de Cristo: um filho de Deus ao interno
da única filiação de Cristo. Na Igreja, a natureza católica tornou-se
dependente da carne divina de Cristo, que implica num poder de reunir o
gênero humano e de unificá-lo na única filiação que vem de Deus.
Na Igreja, a catolicidade é aquela de Cristo: é o transformar em ato a
natureza de Cristo que está em condição de reunir no mesmo instante o homem
com o homem e o homem com Deus. Em outras palavras, a Igreja, por força de
sua catolicidade, é contrária a qualquer tipo de discriminação, de divisão,
de isolamento, e também é contrária a tudo aquilo que provoca divisão,
qualquer que seja sua origem, interna ou externa ao homem. Cristo não se
limita a reunir as diversas raças numa única mente e numa única fé, mas as
reúne também numa só carne, no verdadeiro sentido da palavra, o que implica
intimidade, compreensão e amor. A Igreja, com o batismo e a eucaristia, é o
corpo místico de Cristo, o ponto de encontro de todo o gênero humano, o
único lugar de encontro de todos os povos, nações, raças, línguas e cores,
capaz de dissolver barreiras e desacordos. Neste modo, todos se transformam
em um único, grande, puro Corpo, um espírito íntimo e amante, um só homem
reconciliado, cuja cabeça é Cristo: este ser unificado é dotado de todos os
carismas e talentos próprios de cada raça, língua e povo, mas está isento de
qualquer divisão, disputa ou discriminação; é exatamente aquilo que se
entende por “catolicidade” da Igreja.
Há uma razão extremamente simples pela qual a Igreja ainda não atingiu a
própria catolicidade, ou melhor, pela qual não vive daquela natureza
católica que deveria constituir a essência de sua vida em Cristo, a
demonstração de seu poder, o segredo de sua totalidade e de sua divina
integridade: esta razão é que a Igreja ainda não conseguiu imaginar os
conceitos divinos como puros e acima da lógica e da razão humana. Em outras
palavras, seus conceitos ainda estão ligados a interpretações articuladas e
filosóficas que impedem a visão serena da natureza católica de Cristo que
tem um poder admirável de reconciliação total e de unificação dos diversos
carismas que ultrapassa não somente as idéias, princípios e dogmas, mas
também a própria capacidade intrínseca de qualquer outra natureza. Este
poder único tem como fundamento o perdão, a purificação, a justificação e a
santificação de cada ser humano através do sangue de Cristo, que está em
condições de tirar os pecados de todo o mundo. É como se a Igreja não
tivesse ainda descoberto a amplitude do poder do sangue de Cristo, a
potencialidade ativa de sua carne e a profundidade de seu amor e de sua
justiça.
É óbvio que todos os termos teológicos de per si não estão isentos de
defeitos. Estes estão na interpretação e na compreensão dos termos: o humano
aproximou-se do divino - isto é, da simples e transparente natureza de Deus
- com a mente e o pensamento de Adão e não de Cristo. Por isso o desacordo é
a conseqüência imediata e inevitável da natureza cismática de Adão. O cisma
não está na natureza de Cristo, nem faz parte de sua natureza católica, mas
veio como resultado do cisma essencialmente radicado na natureza do ser
humano, uma natureza marcada pelo pecado e tornada plena de ódio, suspeita,
mal entendido, vaidade e discórdia. A culpa do cisma na Igreja não está na
natureza da Igreja, mas na natureza da capacidade do homem de conceber e
compreender a natureza de Cristo e da Igreja.
Assim, podemos concluir que todo o cisma no conceber a natureza de Cristo e
da igreja assinala que nós nos aproximamos do divino de maneira humana, com
nossa mente decaída, com uma aproximação não divina. Todo cisma acontecido
na igreja indica que o homem começou a enfrentar argumentos eclesiais com
uma mentalidade etnocêntrica e racial (que dispersa) e não de modo eclesial
e católico (que une).
Somente para o homem novo, Cristo permanecerá indivisível, incontestável e
sem variações; somente para o homem que possui o pensamento de Cristo a
igreja permanecerá una, única, católica para todos os povos, ortodoxa em
toda a doutrina, e livre de qualquer divisão sectária; será assim somente
para o homem novo que aceitou no profundo do coração a natureza de Cristo.
Somente quando todos renunciam à própria vontade emerge a única vontade de
Cristo; e somente quando cada um renega as próprias paixões e o ódio, e
dobra o corpo e a mente à obra do Espírito Santo, somente então se
manifestará a carne mística de Cristo que exercitará sua ação na Igreja
reunindo os corações, os princípios e idéias. Somente quando todos
entregarem espontaneamente a própria vida a Cristo é que Cristo se
manifestará em sua igreja e o seu Espírito será derramado sobre ela. Quando
todo fiel na Igreja, com arrependimento sincero, se entregar espiritualmente
a Deus com fé e ardor, e quando toda a igreja tiver feito a mesma coisa, é
que a Igreja será una pela graça de Deus, é que as igrejas serão um pelo
poder do Espírito Santo: assim, Cristo será o único pastor que com o seu
Espírito guia o único rebanho, tornando-se a fonte da catolicidade e da
unicidade da Igreja.
Por acaso, a Igreja não é uma manifestação da encarnação de Cristo na terra
e a sua continuidade no tempo? Nela os fiéis formam a nova natureza humana,
glorificada na pessoa de Cristo e, através dele, adotada por Deus. Como
poderia Cristo se manifestar na Igreja se não mediante a unicidade de
pensamento, de vontade, de desejo, de senso comum entre os filhos do único
Deus - filhos nascidos não do sangue, nem da vontade da
Como se pode demonstrar ao mundo que Deus é uno se não através da unidade de
todos aqueles que nasceram dele?
E como o mundo poderia crer que Jesus Cristo é o Filho unigênito a não ser
através da única filiação daqueles que crêem nele, que nasceram de Deus
através de sua morte por eles e através de sua ressurreição junto com eles,
e que agora estão unidos à sua carne, ao seu sangue e ao seu Espírito? Em
outras palavras, eles se tornaram membros de um único Corpo.
o é conseqüência óbvia que a catolicidade da Igreja e a sua unicidade não
são outra coisa senão a plenitude da teologia, a prova da existência e da
ação de Cristo, a realização do novo nascimento do homem obtida do alto
mediante a água e o Espírito Santo?
A falta de plenitude quanto à catolicidade e unidade da igreja, ainda
existente nas igrejas espalhadas por toda a terra, pede de nós não o
reconsiderar a nossa teologia - que é autêntica e fiel -, mas de
reconsiderar a nós mesmos em relação à nossa correta teologia. Assim
poderemos corrigir nossa visão de Deus, o único Pai de toda a humanidade, e
a nossa visão de Cristo, o único Salvador e Redentor de todos os que invocam
seu nome: nele, toda a humanidade é indiscriminadamente adotada por Deus.
Essa nova ótica modificará o nosso amor pelo homem, por cada homem, enquanto
o torna incontestavelmente nosso irmão, mesmo quando ele permanece hostil e
nos prepare laços de morte.
Devemos ter claro que aquilo que nos impele a alcançar esta catolicidade e
unidade eclesial não é simplesmente a paixão teológica ou o idealismo, nem
mesmo o remorso; este desejo deve nascer da nossa fé, do nosso amor, da
novidade do nosso nascimento do alto de que nós não podemos absolutamente
prescindir; não podemos continuar nesta nova vida sem a catolicidade da
Igreja e a sua unidade.
O homem novo não poderá jamais viver separado dos outros, como um fragmento
quebrado, nem pode sentir ódio ou hostilidade pelos outros. O homem novo
deve ser completo e uno, porque tem origem numa única natureza e num único
Pai. A única natureza nova com a qual cada homem nasceu na igreja é aquilo
que o torna uno no todo, mediante a graça e o Espírito. Aqui o amor faz
valer a própria autoridade divina e católica. Na imagem de Cristo, Filho
unigênito, são batizados todos aqueles que nasceram para o Pai graças à
única paternidade.
Deste modo a Igreja é católica porque é o corpo do Filho (sacrificado pelo
mundo inteiro por obra do amor) que recapitula em si todas as coisas. A
Igreja é una porque é a indivisível morada do Pai.
Assim, podemos aspirar, com abundantes lágrimas e ferventes súplicas, com a
consciência do homem novo, à catolicidade e à sua unidade em todo o mundo.
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen. |